domingo, maio 06, 2007

Comparação das traduções de Ulisses de James Joyce para o Português

Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha। Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Elevou o vaso e entroou:

- Introibo ad altare Dei।
Parando, perscrutou a escura escada espiral e chamou asperamente:
- Suba, Kinch. Suba, jesuíta execrável.

Prosseguiu solenemente e galgou a plataforma de tiro। Encarando-os, abençoou grave três vezes a torre, o campo circunjacente e a montanha no despertar. Então, percebendo Stephen Dedalus, inclinou-se para ele, traçando no ar rápidas cruzes, com grugulhos guturais e meneios de cabeça. Stephen Dedalus, enfarado e sonolento, apoiava os braços sobre o topo do corrimão e olhava friamente a meneante cara grugulhante que o bendizia, eqüina de comprimento, e a cabeleira clara não tosada, estriada e matizada como carvalho pálido.

Buck Mulligan mirou-se um instante sob o espelho e em seguida recobriu o vaso com vivacidade:
- Ao quartel! – disse peremptório.
Acrescentou, em tom predicante:


- Porque isto, ó bem amados, é a autêntica Christina: corpo e alma, e sangue e chagas. Música lenta, por favor. Fechar os olhos cavalheiros. Um instante. Uma pequena complicação com estes corpúsculos brancos. Silêncio, minha gente!
Escrutando de esguelha as alturas, emitiu um longo assobio grave de chamamento, deteve-se depois por instantes numa atenção extática, os brancos dentes iguais brilhando aqui e ali em pontos de ouro। Chrysostomos. Dois fortes silvos estrídulos responderam através da calma.
- Obrigado, meu velho – Gritou animoso। – A coisa vai. Corte a corrente, sim?



Pulou da plataforma de tiro e olhou sério para seu observador, arrepanhando pelas pernas as bandas soltas do roupão। A fornida cara sombreada e a soturna queixada oval lembravam um prelado, protetor das artes, da Idade Média. Um sorriso divertido abrochou-lhe calmo os lábios.

- A pilhéria que há nisso – disse jovial. – Esse seu nome absurdo, em grego antigo.
Apontou-o com o dedo em gesto amigo, e retornou ao parapeito, rindo de si para si. Stephen Dedalos galgou os degraus, seguiu-o a meio caminho com fastio e sentou-se no bordo do parapeito, olhando-o impassível, que apoiava o espelho no parapeito, mergulhava o pincel no vaso e ensaboava bochechas e pescoço.
A voz jovial de Buck Mulligan prosseguia:
- Meu nome é absurdo também: Malachi Mulligan, dois dáctilos. Mas soa Helênico, não soa? Ágil e ensolarado como um cabrito mesmo. Precisamos ir a Atenas. Você virá, se consigo arrancar da tia umas vinte librazinhas?
Pôs de lado o pincel e, rindo com deleite, gritou:
Virá ele, esse mirrado jesuíta?
Descontinuando, começou a barbear-se com cuidado.
- Diga-me, Mulligan – disse Stephen com calma.
- Sim, querido?
- Quanto tempo Haines vai ficar nesta torre?

Buck Mulligan exibiu uma bochecha barbeada sobre seu ombro direito.
Por Deus, não é abominável? – Disse com franqueza. – Que Saxão pesado. Pensa que você não é um cavalheiro. Por Deus, esses malditos ingleses. Arrebentando de dinheiro e de indigestão. Porque vem de Oxford. Você sabe, Dedalus, você tem a verdadeira marca de Oxford. Ele não pode entendê-lo. Oh, para você reservo o melhor nome: Kinch, a lâmina-gume.
Barbeava-se com minúcia o queixo.
- Ele passou a noite delirando com uma pantera negra – disse Stephen. – Onde está o estojo de fuzil dele?
- É um lunático infeliz – disse Mulligan। – Você esta aterrorizado, não?

- Estava – disse Stephen com energia e medo acrescido. – Nesta escuridão, com um sujeito que não conheço, delirando e lamuriando-se, a querer abater uma pantera negra. Você já salvou gente de afogamento. Mas eu não sou herói. Se ele fica aqui, dou o fora.
Buck Mulligan franziu o sobrolho à espuma da navalha. Saltou de seu poleiro e começou a buscar sôfrego nos bolsos das calças.


- Que porra – disse rudemente.
Retornou à plataforma de tiro e, metendo a mão no bolso superior de Stephen, disse:
- Que se nos conceda este trapo de focinho para limpar minha navalha.
Stephen suportou que ele retirasse e exibisse segurando-o por um canto um lenço sujo e amarrotado. Buck Mulligan limpou a lâmina com minúcia. Depois, fitando o lenço, disse:
- O trapo de focinho do bardo। Uma nova cor artística para nossos poetas irlandeses: verdemuco. Você quase que pode degustá-lo, não pode?

Subiu no parapeito de novo e mirou na baía de Dublin, os louros cabelos carvalho-pardo agitando-se de leve.
- Por Deus – disse sereno. – Não está o mar tal como Algy lhe chama: a doce mãe gris? O mar verdemuco. O mar escrotoconstrictor. Epi oinopa ponton. Ah, Dedalus, os Gregos! Preciso ensinar-lhe. Você deve lê-los no original. Thalatta! Thalatta! É a nossa grande doce mãe. Venha e veja.
Stephen subiu e aproximou-se do parapeito. Apoiando-se neste olhava para as águas e para o barco-correio surgindo na boca da angra de Kingstown.
- Nossa poderosa mãe – disse Buck Mulligan.
Volveu abruptamente seus grandes olhos inquiridores do mar para o rosto de Stephen।

- Minha tia crê que você matou sua mãe – disse। – Eis a razão por que ela não quer que eu me dê com você.
- Alguém a matou – disse Stephen lúgubre.
- Você podia ter-se ajoelhado, que Diabo, Kinch, quando sua mãe lhe pediu isso moribunda – Buck Mulligan dizia. – Sou tão hiperbóreo quanto você. Mas imaginar sua mãe suplicando-lhe no seu ultimo alento que você se ajoelhasse e rezasse por ela. E você recusar. Há alguma coisa de sinistro em você...

Descontinuou e ensaboou de leve de novo a outra bochecha. Um sorriso tolerante aflorava-lhe os lábios.
- Mas é um mimo delicioso – murmurou de si para si. – Kinch, o mais delicioso de todos os mimos.
Barbeava-se por inteiro e com cuidado, em silêncio, sério.
Stephen, um cotovelo apoiado no granito rugoso, opunha a palma da mão contra a fronte e contemplava a borda puída da manga preta brilhosa do paletó. Uma dor, essa não era ainda a dor do amor, roia-lhe o coração. Silenciosamente, em um sonho ela lhe aparecera depois da morte, seu corpo gasto dentro de largas pardas vestes funéreas exalando um odor de cera e pau-rosa, seu hálito, pendente sobre ele, mudo, repreensivo, um esmaecido odor de cinzas molhadas. Através da borda esgarçada do punho, via o mar louvado como a grande doce mãe pela voz bem nutrida a seu lado. O anel da baía e horizonte cinturava uma fosca massa verde de líquido. Um vaso de porcelana branca ficara ao lado do seu leito de morte com a verde bile viscosa que ela devolvera do fígado putrefeito nos seus bulhentos acessos estertorados de vômito.
Buck Mulligan limpava de novo a lâmina.
- Ah, pobre carcaça de cão – disse em tom carinhoso. – Preciso dar-lhe uma camisa e uns trapos de focinho. Como vão as bragas de segunda mão?
- Entram razoavelmente bem – respondeu Stephen.
Buck Mulligan atacava a covinha debaixo do sotolábio.
- A pilhéria que há nisso – disse ele alegre – é que elas deviam ser de segunda perna. Deus é quem sabe que cambaio sarnento as usou. Tenho um par encantador listrado-cinza. Você ficará soberbo nelas. Não estou brincando, Kinch. Você fica danadamente bem, quando se veste direito.
- Obrigado – disse Stephen. – Mas não posso usá-las se são cinza.
- Não pode usá-las – Buck Mulligan dirigia-se à própria cara no espelho. – Praxe é praxe. Mata a mãe mas não pode usar calças cinzentas.
Dobrou com esmero a navalha e com golpes de ponta de dedo massageou a pele macia.
Stephen virava sua contemplação do mar para a face fornida de móveis olhos azul-esfumaçados.
- O sujeito com quem estive ontem no Ship – disse Buck Mulligan – diz que você tem p. g. d. Está em Dottyville com Conolly Norman, Paralisia geral da demência.
Deslizou o espelho em meio círculo no ar para faiscar nas ondas longes ao revérbero solar agora irradiante sobre o mar.
Seus curvos lábios escanhoados riam e as pontas de seus brancos dentes resplandescentes. O riso tomou-lhe o forte tronco compacto.
- Contemple-se – disse – seu bardo execrável.
Sthepen recurvou-se para a frente e afundou os olhos no espelho sustido ante ele, fendido numa rachadura curva, cabelo em pé. Como ele e os outros me vêem. Quem escolheu esta cara para mim? Esta carnicarcaça a sacudir sanguessugas. Ele me pede a mim também.
- Surripiei-o do quarto da virago – Buck Mulligan dizia. – Bem feito para ela. A tia reserva sempre criadas chochas para o Malachi. Para não induzi-lo à tentação. E se chama Úrsula.
Rindo de novo, retirou o espelho aos olhos perscrutantes de Stephen.
- A fúria de Caliban por não ver própria imagem ao espelho – disse – Se ao menos Wilde estivesse vivo para vê-lo.
Recuando e apontando, Stephen disse com amargura:
- É um símbolo da arte irlandesa. O espelho rachado de uma criada.
De supetão Buck Mulligan enlaçou seu braço ao de Stephen, pondo-o a andar com ele ao redor da torre, navalha e espelho chocalhando no bolso em que os enfiara.
- Não é justo gozá-lo desta maneira, não é, Kinch? – disse, com carinho. – Deus é que sabe que você tem mais espírito do que qualquer um deles.
Parados de novo. Ele teme o escalpelo de minha arte como eu a dele. A fria pena de aço.
- Espelho rachado de uma criada. Diga isso à vaca do sujeito lá em baixo e arranque dele um guinéu. Está fedendo a dinheiro e acredita que você não é um cavalheiro. O velho dele encheu a burra vendendo jalapa aos zulus, ou com alguma negociata danada ou coisa que o valha. Por Deus, Kinch, se ao menos você e eu pudéssemos trabalhar juntos talvez fizéssemos alguma coisa pela ilha. Helenizá-la.
O braço de Cranly. Seu braço.
- E pensar que você tem de pedir a estes porcos. Eu sou o único que sabe o que você vale. Por que é que você não confia mais em min? Que é que você fareja contra mim? É por causa do Haines? Se ele fizer mais algum barulho aqui, desço com o Seymour e lhe passaremos um pito pior do que o que se passou em Clive Kempthorpe.
Gritos juvenis de vozes endinheiradas nos aposentos de Clive Kempthorpe। Caras pálidas: sustentam-se as costelas no rir, cutucando-se uns aos outros, oh, vou morrer!leve-lhe a notícia a ela com doçura, Aubrey! Vou morrer! Com as fraldas em retalhos da sua camisa batendo ao ar, saltita e cambaleia ao redor da mesa, as calças aos pés, perseguido por Ades do Magdalen com as tesouras de alfaiate. Uma cara de vitelo espavorido dourada de geléia. Não quero que me tirem as calças! Não brinquem de cabra cega comigo!
Gritos da janela aberta assustando a tarde no pátio। Um jardineiro surdo, de avental, mascarado da cara de Mattew Arnold, empurra sua segadora sobre a relva sombria olhando de perto os segmentos dançarinos dos herbicaules.
Para nós mesmos... neopaganismo... ônfalo.
- Deixe-o ficar – disse Stephen. – Não há nada contra ele a não ser de noite.
- Então o que é que há? – perguntou com impaciência Buck Mulligan. – Cuspa fora. Sou bastante franco com você. Que é que você tem contra mim?
Pararam, olhando em direção do cabo rombudo de Bray Head, que jazia n’água como o rosto de uma baleia adormecida. Stephen desprendeu o braço suavemente.
- Quer que eu diga? – Perguntou।

- Sim quero, o que é que há? – respondeu Buck Mulligan. – Não me lembro de nada
Olhava o rosto de Stephen no que falava. Uma breve brisa aflorava-lhe o cenho, agitando de leve seus louros cabelos despenteados e iluminando pontos argênteos de ansiedade nos seus olhos.
Stephen, deprimido pela própria voz, disse:
- Você se lembra do primeiro dia que fui a sua casa depois da morte de minha mãe?

Buck Mulligan enrugou rápido o sobrecenho e disse:
- O quê? onde? Não me lembro de nada. Lembro somente de idéias e sensações. Por quê? Que aconteceu, em nome de Deus?
- Você estava fazendo chá – Stephen dizia – e eu cruzei o patamar para buscar mais água quente. Sua mãe e alguma visita vinham da sala. Perguntou-lhe quem estava em seu quarto.
- É? – disse Buck Mulligan. – Que é que eu disse? Não me lembro.
- Você disse – respondeu Stephen – Ô. é apenas Dedalus, cuja mãe esticou as canelas.
Um rubor que o fez parecer mais jovem e mais atraente apontou nas faces de Buck Mulligan.
- Foi isso que eu disse? – perguntou – Muito bem. Que mal há nisso?
Despejava nervosamente seu embaraço.
- E o que é a morte? – perguntava, - a de sua mãe ou a sua ou a minha? Você viu apenas a morte de sua mãe. Eu as vejo cada dia na Mater ou em Richmond pipocar e na sala de dissecção pôr as tripas à mostra. É uma coisa animal e nada mais. Apenas não conta. Você não conseguiu ajoelhar-se para rezar por sua mãe no seu leito de morte quando ela lhe pediu. Por quê? Porque você tem esse amaldiçoado sangue jesuíta em suas veias, mas correndo em sentido contrário. Para mim tudo isso é risível e animal. Seus lobos cerebrais não funcionam. Ela chama o doutor Sir Teazle que lhe colhe botões de ouro da fronha. Faça-se-lhe mimo até que acabe. Você se opõe à sua última vontade na hora da morte e me vem lamuriar-se contra mim porque não a pranteio como uma carpideira do Lalouette. É um absurdo! Admito que tenha dito isso. Não significa que era minha intenção ofender a memória de sua mãe.
Falava para assenhorear-se de si mesmo। Stephen, escudando as feridas abertas que suas palavras vinham deixando em seu coração, disse muito frio:
- Não pensava na ofensa à minha mãe.
- Pensava em quê, entao? – perguntou Buck Mulligan.
- Na ofensa a mim – Stephen respondeu.
Buck Mulligan girou sobre os tornozelos.
- Oh, mas que sujeito difícil! – exclamou।
Pôs-se a andar rápido ao longo do parapeito. Stephen ficou no seu lugar, mirando por sobre o mar calmo em direção do cabo de terra. Mar e cabo faziam-se agora escuros. Pulsações percutiam em seus olhos, velando-lhe a vista, e ele sentia febre nas faces.
Uma voz de dentro da torre chamou alto:
Você está aí em cima Mulligan?
- Estou descendo – respondeu Buck Mulligan.
Voltou-se para Stephen e disse:
- Olhe o mar. Que lhe importam ofensas? Espante o Loyola, Kinch, e desçamos. O saxônio quer seu toucinho matinal.
Sua cabeça parou de novo por instante no topo da escada, ao nível do forro.
- Não fique ruminando essas coisas o tempo todo – disse. – Sou um inconseqüente. Deixe de remoer esse moinho.
A cabeça desapareceu, mas a azoada da sua voz evanescente escapava da boca da escada:
Nem mais a um canto ruminar
Do amor o místico amargor
Pois Fergus doma os carros brônzeos
Vegetissombras flutuavam silentes na paz matinal desde o topo da escada ao mar que ele contemplava। Da borda para fora o espelho do mar branquejava; esporeado por precípetes pés lucífugos. Colo branco do mar pardo. Ictos gêmeos, dois a dois. Mão dedilhando harpicordas fundindo-lhes os acordes geminados. Undialvas palavras acopladas tremeluzindo sobre a maré sombria.

Uma nuvem começava a encobrir o sol, lentamente, sombreando a baía em verde mais fundo. Jazia atrás dele, um vaso de águas amargas. A canção de Fergus: eu cantava-a sozinho em casa, sustendo os longos acordes baixos. Sua porta ficava aberta: ela queria ouvir minha música. Silencioso de reverência e piedade aproximei-me do seu leito. Chorava no seu leito miserável. Por estas palavras, Stephen: do amor o místico amargor.
Onde agora?
Seu segredos: velhos leques de plumas, cartões de dança debruados polvilhados de almíscar, um atavio de contas de âmbar na sua gaveta cerrada। Uma gaiola pendia de sua janela ensolarada quendo era menina. Ouvira o velho Royce cantar na pantomima de Turko o terrível e rira com os outros quando cantava:

Sou o guri
Que sente e ri
Com o Invisível.
Júbilo fantasmal, revoluto: almiscarperfumado.
Nem mais a um canto ruminar
Revoluto na memória da natureza com seus brinquedos. Lembranças assaltam-lhe o cérebro meditabundo. Seu copo dela com a água da bica da cozinha, para depois que houvera comungado. Uma descaroçada maçã, recheada de açúcar mascavo, assada para ela à lareira em sombria tarde de outono. Suas unhas bem feiçoadas carminadas de sangue de piolhos esmagados das camisas das crianças.
Em um sonho, silentemente, ela lhe viera a ele, seu corpo gasto dentro de largas vestes funéreas exalando um odor de cera e de pau-rosa, seu hálito pendido sobre ele com mudas palavras secretas, um esmaecido odor de cinzas molhadas.
Seus olhos perscrutadores, fixando-se da morte, para sacudir e dobrar minha alma. Em mim somente. O círio dos mortos a alumiar sua agonia. Lume agonizante sebre face torturada. Seu áspero respirar ruidoso estertorando-se de horror, enquanto todos rezavam aos seus pés. Seus olhos sobre mim para redobrar-me. Liliata rutilantium te confessorum turma circumdet: iubilantium te virginum chorus excipiat.
Necrófago! Mascador de cadáveres!
Não, mãe. Deixa-me ser e deixa-me viver.
- Kinch, ô!
A voz de Buck Mulligan reboava de dentro da torre. Fez-se mais perto do topo da escada, chamando de novo. Stephen, ainda trêmulo ao grito de sua alma, ouvia a quente luz do sol a vibrar e no ar detrás dele palavras carinhosas.
- Dedalus, venha, seja um bom sujeito. A comida está pronta. Haines pede desculpas por nos ter acordado de noite. Tudo está nos eixos.
- Já vou – disse Stephen, voltando-se.
- Venha, por amor de Deus – dizia Buck Mulligan. – por amor de mim e por amor de todos.
Sua cabeça desapareceu e reapareceu.
- Falei-lhe a respeito do símbolo da arte irlandesa. Ele achou muito inteligente. Veja se lhe arranca alguma coisa, sim? Um guinéu, esclareço.
- Eu recebo hoje – Disse Stephen.
- Daquela infecta escola? – disse Buck Mulligan. - Qaunto? Quatro librinhas? Empreste-nos uma.
- Como queira – disse Stephen.
- Quatro luzidos soberanos – gritava Buck Mulligan com alegria. – Vamos ter uma bebedeira maravilhosa de espantar os drúidas druídicos. Quatro soberanos onipotentes.
Ergueu os braços e pataleou pelos degraus de pedra abaixo, cantando desentoado com sotaque cockney:
Ê gente, vamos folgar
Com uísque, vinho e cerveja
Na coroação
No dia da coroação?
Ê gente, vamos folgar
No dia da coroação?
Sol quente brincando sobre o mar. O níquel do vaso de barbear brilhava esquecido, sobre o parapeito. Por que deveria eu levá-lo para baixo? Ou deixá-lo aí o dia inteiro, amizade esquecida?
Aproximou-se dele, deteve-o por instantes entre as mãos, sentindo-lhe o frescor, o cheiro da baba viscosa da espuma em que estava mergulhado o pincel. Assim levei então o incensário em Clongowes. Sou agora outro mas ainda assim o mesmo. Um servidor também. O servo de um servidor.
Na escura sala abobodada da torre a forma enroupada de Buck Mulligan movia-se ágil daqui para ali perto da lareira,escondendo e mostrando a nitência amarela. Dois fustes de luz suave tombavam sobre o chão lajeado do alto das barbaças: e na convergência dos seus raios uma nuvem de fumo de carvão e fumaça de banhas fritas flutuava, volteando.
- Vamos sufocar-nos – disse Buck Mulligan. – Haines, abra a porta, sim?
Stephen pousou o vaso de barbear sobre o armário. Um individuo alto levantou-se da hamaca em que estivera sentado, dirigiu-se à porta e abriu-lhe as folhas internas.
- Você tem a chave? – uma voz perguntou.
- Dedalus está com ela – Disse Buck Mulligan. – Janey Mack, estou sufocando.
Berrou sem tirar os olhos do fogo:
- Kinch!
- está na fechadura – Disse Stephen, avançando.
A chave arranhou duas voltas em atrito e, quando a pesada porta se escancarou, bem vindo ar lúcido e leve entrou. Haines permaneceu à porta, olhando para fora. Stephen arrastou sua valise revirada para perto da mesa e sentou-se a esperar. Buck Mulligan despejou a fritura na travessa ao lado dele. Em seguida, trouxe a travessa e uma chaleira grande para cima da mesa, pousou-as pesadamente e resfolegou aliviado.
- Estou derretendo – disse – como observou a vela quando... Chega. Nem mais uma palavra sobre a questão. Kinch, acorde. Pão manteiga, mel. Haines, venha. A gororoba está pronta. Abençoa-nos, ó Senhor e a estes dons teus. Onde está o açúcar? Ô cretino, não há leite.
Stephen retirava o pão, o pote de mel e a mantegueira do armário. Buck Mulligan deixava se sentar num mau humor súbito.
- Que espécie de lorpa é esta? – dizia. – Eu bem que lhe disse que aqui estivesse logo depois das oito.
- Podemos bebê-lo puro – disse Stephen. – Há um limão no armário.
- Oh, para o diabo você e suas modas parisienses – disse Buck Mulligan. – O que eu quero é leite de Sandycove.
Haines chegava da porta da frente e dizia calmo:
- A mulher está chegando com o leite.
- Que deus o abençoe – gritou Buck Mulligan, pulando da cadeira. – Sente-se. Sirva o chá. O açúcar está no saco. Já me bastou a danação de domar estes ovos.
Despedaçou a fritura da travessa e transbordou-a pelos três pratos dizendo:
- In nomine Patris et filii et Spiritus sancti.
Haines sentou-se para servir o chá।
- Estou pondo dois torrõezinhos para cada um – dizia. – Mas noto que você, Mulligan, faz chá forte, não é?
Buck Mulligan, no que serrava grossas fatias de pão, dizia com persuasiva voz de velha:
- Quando fauço chá, fauço chá, como dizia a mãezinha Grogan. E quando fauço água, fauço água.
- Por Jove, é chá – dizia Haines.
Buck Mulligan prosseguia serrando e falseteando:
- Assim fauço, senhora Cahill, dizia ela Praza a deus, dona, dizia a senhora Cahill, que vosmicê não faça os dois no mesmo pote.
Estendeu para cada um dos seus comensais uma espessa fatia de pão, empalado na sua faca.
Isto são gestas populescas – disse com tom doutoral – para seu livro, Haines. Cinco linhas de texto e dez páginas de notas sobre o povo e os piscideuses de Dundrum. Impressas pelas Parcas no ano do grande vento.
Voltou-se para Stephen e perguntou-lhe com insinuante voz inquiridora, alteando as sobrancelhas:
- Lembrar-se-á, irmão, se o pote de chá e de água da mãezinha Grogan é referido no Mabinogion ou nos Upanishads?
- Não creio – disse Stephen com gravidade.
- Não o crê? – disse Buck Mulligan no mesmo tom. – Dê suas razões, lhe rogo.
- Especulo – Stephen disse no que comia – que isto não está nem dentro nem fora do Mabinogion. A mãezinha Grogan, é de supor, era uma consangüínea de Maria Ana.
A face de Buck Mulligan sorria de deleite.
- Encantador – disse com meloso tom amaneirado, mostrando os dentes brancos e piscando os olhos brincalhões. - Crê mesmo que era? Que coisa encantadora.
Então, emborrascando todos os seus traços de súbito, rosnou com rascante voz rouquenha no que de novo cortava vigorosamente pão:
- A velha Maria Ana
Não se lhe dá nem se dana,
Mas, levantando as anáguas...
Tinha a boca repleta de fritura e mastigava e azoava.
O vão da porta se escureceu por uma forma que entrava.
- O leite, senhor.
- Aproxime-se, dona – disse Mulligan – Kinch, apanhe a jarra.
Uma velha avançou e ficou parada perto do cotovelo de Stephen.
- Faz uma linda manhã, senhor – disse ela. – Graças ao Senhor.
- A quem? – perguntou Mulligan, lançando-lhe um rápido olhar. – Ah sim, tem razão!
Stephen inclinou-se para trás e pegou a leiteira do armário.
- Os ilhéus – disse Mulligan para Haines com tom descuidado – falam com freqüência no colecionador de prepúcios.
- Quanto, senhor? – perguntou a velha.
- Um quarto – fez Stephen.
Viu-a verter na medida e desta na jarra um branco leite generoso, não o dela। Velhas mamas flácidas. Verteu de novo uma medida inteira e uma quebra. Vetusta misteriosa, viera de um mundo matinal, uma talvez mensageira. Louvava a bondade do leite vertendo-o. acocorada a uma vaca paciente manhãzinha no campo exubere, bruxa sobre seu cogumelo do diabo, seus dedos nodosos rápidos nas tetas cremosas. Mugia-lhe ao redor dela, que a conhecia, o gado aljofarcetinado. Seda da criação e pobre velhinha, nomes a ela dados nos bons velhos tempos. Errabunda anciã, forma humilde de uma imortal servindo seu conquistador e seu alegre sedutor, concubina de ambos, mensageira vinda da manhã secreta. Para servir ou para exprobar, ele não o sabia: mas repugnava-lhe rogar seus favores dela.

- É ele sem a menor duvida, dona – dizia Mulligan, servindo o leite nas xícaras.
- Prove, senhor, prove – dizia ela.
Ele bebeu às instâncias dela.
Se ao menos pudéssemos viver de bom alimento como este – dizia-lhe ele, algo gritado – não estaríamos com o país cheio de dentes cariados e de intestinos podres. Vindo num pântano de lama, comendo alimentos ordinários e com as ruas cobertas de poeira, de bosta de cavalo e escarros étegos.
- O senhor é estudante de artes médicas, senhor? – perguntou a velha.
- Sim, dona, sou – Buck Mulligan respondeu.
Stephen ouvia em silêncio exprobrativo। Ela inclina a velha cabeça à voz que lhe fala alto, seu curandeiro, seu mezinheiro; a mim ela me desconsidera। A voz que a expenitenciará e a ungirá para a tumba, a ela toda, menos sua carcaça suja de mulher, sua carne mortal não feira à imagem de Deus, a presa da serpente. E à voz alta que agora lhe infunde esse silêncio de olhos inseguros e surpresos.
- Entende o que ele lhe diz? – Stephen perguntou-lhe.
- É francês que está falando, senhor? – perguntou a velha a Haines.
Haines falou-lhe de novo, com fala mais compassada, confiadamente.
- Irlandês – Buck Mulligan disse. – Há alguma coisa de gaélico em voce?
Pensei pela toada que era irlandês – disse ela. – O senhor é do oeste?
Sou inglês – Haines respondeu.
Ele é inglês – disse Buck Mulligan – e pensa que na Irlanda deveríamos falar irlandês.
- Devíamos de fato – disse a velha – e eu mesma tenho vergonha de não falar a língua. Dizem-me os que a falam que é uma língua e tanto.
- Tanto não é a palavra – disse Buck Mulligan। – Totalmente maravilhosa. Encha-me mais uma xícara de chá, Kinch. Gostaria de tomar uma xícara, dona?
- Não, muito obrigada, meu senhor – disse a velha, enfiando a argola da leiteira no antebraço e prestes a sair.
Haines disse-lhe:
- Quanto é a conta? Não seria, Mulligan, melhor pagar-lhe agora, nao?

Stephen enchia as três xícaras.
- Conta, senhor? – disse ela parando। – Bem, são sete manhãs a quartilho de dois pences e nestas três manhãs uma quarta de quatro pences são três quartas são um xelim e um e dois são dois e dois, senhor.

Buck Mulligan suspirou e, tendo enchido a boca com uma côdea espessamente amanteigada dos dois lados, espichou as pernas e começou a rebuscar dentro dos bolsos das calças.
- Pague e não bufe – disse-lhe Haines sorridente.
Stephen enchia uma terceira xícara, uma colherada de chá colorindo esmaecido o grosso leite generoso. Buck Mulligan sacou um florin, girou-o entre os dedos e gritou:
- Milagre!
Estenteu-o por sobre a mesa para a velha, dizendo:
Não me peça nada mais, minha doçura. Tudo que posso dar-lhe estou dando.

Stephen pousou a moeda na mão hesitante dela।
- Ficamos devendo dois pences – disse ele.
- Não há pressa, senhor – disse ela, segurando a moeda. – Não há pressa. Bom dia, senhor.
Fez uma reverência e saiu, seguida pelo terno canto de Buck Mulligan:
- Alma de minha alma, se mais houvera
Mais te pusera, junto aos teus pés.
Voltou-se para Stephen e disse:
- No sério, Dedalus। Estou liso. Corra para a escola infecta e arranje-nos algum dinheiro. Os bardos precisam hoje de beber e folgar. A Irlanda espera que neste dia cada homem cumpra com o seu dever.
- Isso me lembra - disse Haines, levantando-se – que hoje vou visitar sua biblioteca nacional.
- Primeiro, nosso banho – disse Buck Mulligan.
Tornou-se para Stephen e perguntou-lhe blandicioso:
- Não será este o dia de sua lavagem mensal, Kinch?
Em seguida disse a Haines:
- O bardo sujo tem como pundonor lavar-se uma vez por mês.
- A Irlanda toda é lavada pela corrente do golfo – Stephen dizia no que deixava o mel gotejar sobre uma fatia de pão.
Haines, do canto onde passava ao pescoço um lenço folgado por dentro do colarinho aberto de sua camisa de tênis, disse:
- Pretendo, se vocês não objetarem, fazer uma recolha dos seus ditos.
Falando pra mim. Lavam-se, limpam-se, esfregam-se. Remordida do imo-senso. Consciência. Todavia eis esta mancha.
- O do espelho rachado da criada como símbolo da arte irlandesa é infernalmente bom.
Buck Mulligan escoiceou o pé de Stephen por debaixo da mesa e disse em tom caloroso:
- Espere até ouvi-lo sobre o Hamlet, Haines.
- Bem, mas é de fato a minha intenção – disse Haines, ainda falando para Stephen. – Estava justamente pensando no assunto quando chegou aquela pobre velha.
- Isso me renderia algum dinheiro? – perguntou Stephen.
Haines riu-se e, pegando do chapéu de feltro cinzento do cabide da hamaca, disse:
- Não sei, estou certo.
Encaminhou-se para a porta. Buck Mulligan inclinou-se para Stephen e disse-lhe com dureza vulgar:
- Mas que patada! Mas para quê isto?
- E daí? – disse Stephen. – A questão é arranjar dinheiro. De quem? Da leiteira ou dele. Questão de cara ou coroa, penso eu.
- Encho a cabeça dele de você – Buck Mulligan dizia – e depois vem você com suas indiretas sarnentas e seu mofino escárnio jesuítico.
- Não vejo esperança – Stephen disse – nem do lado dela nem do lado dele.
Buck Mulligan suspirou tragicamente pousou a mão sobre o braço de Stephen.
- Mas do lado meu, Kinch – disse.
E num tom mudado de chofre acrescentou:
- Para dizer-lhe a verdade de Deus, creio que você está com a razão. Eles todos não valem um caracol. Mas por que não manobrá-los como eu faço? Que todos vão para o inferno. Saiamos desta pocilga.
Ergueu-se, desatou e desvestiu solene o roupão, dizendo resignadamente:
- Mulligan é despojado de sua vestias.
Esvaziou os bolsos sobre a mesa.
- Aqui está o seu trapo de meleca – disse.
E pondo-se o colarinho duro e a gravata rebelde, falava-lhes, censurando-os, e à sua corrente de relógio pendida. Suas mãos mergulhavam e remexiam pelo seu torso no que chamava por um lenço limpo. Remordida do imo-senso. Por Deus, o que importa é trajar o personagem. Quero luvas violetas e botinas verdes. Contradição. Contradigo-me a mim mesmo? Muito bem, então, contradigo-me a mim mesmo. Malachi mercurial. Um mole projétil negro desvoou de suas mãos facundas..
- E aí vai o seu chapéu do Quartier Latin – disse.
Stephen o aparou e o colocou sobre a cabeça. Haines chamava-os à porta de entrada:
- Ê gente, vocês vêm?
- Estou pronto – respondeu Buck Mulligan – rumando para a porta. – Venha, Kinch. Você comeu tudo que restou, pelo que vejo
Recomposto, cruzou o umbral, com palavras e passos graves, dizendo, um quê de pesar:
-E ao sair encontrou Buterly.
Stephen, pegando de seu estoque de freixo do porta-bengala, segui-os no que desciam os degraus, puxou a perra porta de ferro e fechou-a. Pôs a chave enorme num bolso de dentro.
Ao pé da escada, Buck Mulligan perguntou:
- Trouxe a chave?
- Trouxe – disse Stephen, pondo-se à frente deles. Continuou. Atrás ouvia Buck Mulligan bater com sua pesada toalha as hastes altas dos fetos ou da grama.
- Basta, senhor. Como é que se atreve, senhor?
Haines perguntou:
- Você paga aluguel pela torre?
- Doze librotas – Disse Buck Mulligan.
- Ao secretário de estado da guerra – acrescentou Stephen por sobre a espádua.
Pararam enquanto Haines examinava a torre e dissesse por fim:
- Algo gelada no inverno, imagino. Chamam-lhe Martello, não é?
- Billy Pitt mandou construí-las – dizia Buck Mulligan – quando os franceses estavam ao mar. Mas a nossa é a omphalos.
- Que é que você pensa de Hamlet? – perguntou Haines a Stephen.
- Não, não – berrou Mulligan azedo. – Não sou como Tomás de Aquino e as cinqüenta e cinco razões que o sustinham. Esperem até que eu tenha uns quantos quartilhos em mim.
Voltou-se para Stephen dizendo, no que esticava para baixo cuidadosamente as pontas de seu colete amarelo-claro:
- Você não poderia, aliás, soltar a coisa por menos de três quertilhos, poderia, Kinch?
- Isso esperou tanto – disse Stephen com indiferença – que pode esperar um pouco mais.
- Você espicaça a minha curiosidade – disse Haines boamente. – Trata-se de algum paradoxo?
- Bah! – disse Buck Mulligan – já nos libertamos de Wilde e dos paradoxos. A coisa é muito simples. Ele prova algebricamente que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele mesmo é o espírito do próprio pai.
- O quê –dizia Haines, começando por apontar para Stephen. – Ele próprio?
Buck Mulligan envolvia a toalha como estola ao redor do pescoço e, inclinando-se ao riso solto, dizia aos ouvidos de Stephen:
- Ó sombra de Kinch, o ancestral! Javé à procura de um pai!
- Nós estamos sempre cansados pela manhã – disse Stephen a Haines. – E a coisa é mais ou menos longa de contar.
Buck Mulligan, andando à frente de novo, levantava as mãos.
- Só o sagrado quartilho pode desatar a língua de Dedalus – dizia.
- O que eu acho – Haines explicava-se a Stephen, no que seguiam – é que esta torre e estas escarpas daqui sugerem-me de certo modo Elsinore. Que salta de suas bases sobre o mar, não é isso?
Buck Mulligan voltou-se de súbito por um instante para Stephen, mas nada disse. No luminoso instante silente Stephen viu a própria imagem de luto poeirento e barato em meio aos trajes garridos deles.
- É uma história maravilhosa – dizia Haines, levando-os a parar outra vez.
Olhos, pálidos como o mar que o vento refrescara, mais pálidos, fixos e prudentes. Senhor dos mares, ele mirava para o sul a baía, vazia, salvo pelo penacho de fumaça do barco-correio, esbatido contra o horizonte luzidio, e um veleiro bordejando ao longo de Muglins.
- Já li uma interpretação teológica disso em algum lugar – disse ele compenetrado. – A idéia do pai e do filho. O filho lutando por consubstanciar-se com o pai.
Logo em seguida Buck Mulligan estampou uma radiosa cara largamente ridente. Olhava-os, sua boca bem torneada aberta de felicidade, os olhos, de que desaparecera de repente todo o sentido astuto, pestanejando de louco júbilo. Movia a cabeça de boneco a torto e a direito, as abas do seu chapéu-do-panamá tremulando, e principiou a cantar numa tranqüila boba voz feliz:
- Bem raro, ao que sei, sou um rapazinho.
Mamãe é judia, papai, passarinho,
Ao Zeca carpina meu gênio é contrário
Saúde disciplos, saúde Calvário.
Levantou um indicador em admonição.
- Se alguém duvidar que eu não sou divino
Meu vinho não tem, que é bem cristalino
Vai ter água só, pois volto a água pura
O vinho que eu faço após a aventura.
Enlaçou vivamente o estoque de freixo de Stephen a modos de despedida, correndo para uma saliência das escarpas, adejou as mãos de lado como aletas ou asas de um ser prestes a alçar-se aos ares, e cantou:
- Adeus, oh, adeus, escrevei meus ditos,
Renasci, dizei aos Zes, BEneditos,
Voar é das minhas fontes fagueiras
Ao vento do horto das oliveiras.
Cabriolava diante deles como se em direção ao fundo do fosso de quarenta pés, adejando as mãos aladas, saltitando lépido, tremulando-lhe o pétaso de Mercúrio à doce brisa que lhes devolvia a eles seus rápidos pios de passaro.
Haines, que se mantivera a rir comedido, cminhava ao lado de Stephen e dizia:
- Não sei se devíamos rir. Ele está sendo um tanto blasfemo. Quanto a mim, não sou crente, entenda-se. Mas o fato é que sua alegria retira um pouco do mal, não é? Como é que lhe chama? Mestre carpina?
- Balada do Jesus brincalhão – respondeu Stephen.
- Ah – disse Haines – você já a tinha ouvido antes?
- Três vezes ao dia, depois das refeições – disse Stephen, lacônico.
- Você não é crente, é? – perguntou Haines. – Explico-me, crente no sentido restrito da palavra. Criação do nada e milagres e um Deus personalizado.
- Só há um sentido para a palavra, parece-me – disse Stephen.
Haines parou para retirar uma carteira de prata polida em que brilhava uma pedra verde. Abriu-a sob pressão do polegar e ofereceu.
- Obrigado – disse Stephen, tomando um cigarro.
Haines serviu-se e fechou-a com um estalido. Repô-la no bolso do lado e retirou do bolso do colete um isqueiro niquelado, fê-lo pegar e, tendo acendido o seu cigarro, aproximou dentro da concha de suas mãos o pavio chamejante a Stephen.
- Sim, com efeito – disse, ao seguirem adiante de novo. – Ou se crê ou não se crê, não é? Eu pessoalmente não posso engolir essa idéia de um Deus personalizado. Você não a defende?
- Você tem em mim – fez Stephen com desprazer cruel – um tremendo exemplo de livre-pensador.
Continuou a andar, esperando do outro a iniciativa da palavra, arrastando de lado o estoque. A ponteira deste seguia-lhe lépida as pegadas, tilintando-lhe aos calcanhares. Familhar meu, detrás de mim, chamando Steeeeeeeeeephen. Uma linha ondulante ao longo do caminho. Andarão por ele esta noite, vindo aqui pelo escuro. Ele quer a chave. É minha, paguei o aluguel. Agora, como o seu pão de sal. Dê-lhe a chave também. Tudo. Ele pedirá. Isso estava em seus olhos.
- Em suma... – Haines começou.
Stephen voltou-se e viu que o olhar frio que o media não era toda inamistoso.
- Em suma, não ignoro que você é capaz de liberar-se. Você é senhor dos seus atos, eis minha opinião.
- Sou o servidor de dois senhores – disse Stephen, - um inglês e o outro italiano.
- Italiano? – disse Haines.
Uma rainha louca, velha e ciumenta. Ajoelha-te diante de mim.
- E um terceiro – disse Stephen – há por aí que me quer para os seus biscates.
- Italiano? – disse de novo Haines. – Quer explicar-se?
- O estado imperial britânico – Stephen respondeu, enrubescendo – e a santa igreja apostólica e católica romana.
Haines pinçou do lábio inferior umas fibras de tabaco, antes de falar.
- Posso entender isso muito bem – disse, calmamente. – Ouso crer que um irlandês deve pensar assim. Sentimos na Inglaterra que os tratamos de maneira mais para o justo. Parece que a culpa cabe à história.
Os orgulhosos títulos potentes ressoavam na memória de Stephen o triunfo de seus sinos brônzeo-impudicos: et unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam: o lento crescer e o desenvolver do rito e do dogma como seu próprio precioso pensar dele, uma química de estrelas. Símbolo dos apóstolos na missa do papa Marcelo, as vozes uníssonas, cantando um solo solto de afirmação: e por trás desse canto, o anjo vigilante da igreja militante desarmava e ameaçava os heresiarcas. Um horda de heresias moscando-se com as mitras enviesadas: Fócio e a raça dos galhofeiros de que Buck Mulligan era um, e Ário, guerreando a vida inteira quanto à consubstancialidade do filho com o Pai, e Valentim, menosprezando o corpo terrenal de Cristo, e o sutil heresiarca africano Sabélio, que sustentava ser o pai ele mesmo Seu próprio Filho. Palavras, Mulligan as proferira um momento antes em galhofa ao estrangeiro. Vã galhofa. O vazio espera certo todos os que tecem o vento: uma ameaça, um desarme, uma derrota, por esses anjos aguerridos da igreja, falange de Miguel, que a defende sempre na hora do conflito com suas lanças e seus escudos.
Muito bem, bravo. Aplausos prolongados. Zut! Nom de Dieu!
- Sou um britânico, é verdade – dizia a voz de Haines – e isso me sinto. Nem quero ver minha terra tombar nas mãos dos judeus alemães tampouco. E nesse momento, creio, esse é o nosso problema nacional.
Dois homens estavam no topo da escarpa, olhando: negociante, marítimo.
- Ruma para a angra de Bullock.
O marítimo nutou para o norte da baía com certo desdém.
- Por aquela banda há cinco braças – disse. – Será levado para lá quando a maré chegar dentro de uma hora. Hoje faz nove dias.
O homem que se afogara. Um veleiro guinado pela baía vazia esperando que uma carcaça inchada flutuasse, virasse para o sol sua cara balofa, branca de sal. Aqui estou.
Baixaram pela senda tortuosa até a ria. Buck Mulligan estava em pé sobre uma pedra, em mangas de camisa, a gravata desafivelada flutuando por sobre o ombro. Um jovem, agarrando-se a um esporão de rocha próximo à dele, movia lento a modo de rã as pernas verdes na geléia funda da água.
- Seu irmão está com você, Malachi?
- Está em Westmesth. Com os Bannons.
- Ainda? Recebi uma carta de Bannon. Diz que topou por lá com uma garota deliciosa. Chama-lhe garota-fotografia.
- Instantâneo, não é? Exposição curta.
Buck Mulligan sentou-se para desatar as botas. Um homem maduro ejetou rente ao esporão da rocha a vermelha cara resfolegante. Grimpou rastejante pedra a pedra, a água lizindo-lhe a cachola e a grinalda de cabelos grisalhos, a água borboteando-lhe pelo peito e pela pança e cascateando em jatos da sunga preta pendente.
Buck Mulligan deus-lhe passagem para que se arrastasse para trás dele e, esgueirando um olhar a Haines e Stephen, persignou-se piamente com a unha do polegar pelo cenho, lábios e esterno.
- Seymour está de volta à cidade – disse o jovem, agarrado de novo ao esporão da rocha. – Deu o fora no estudo de medicina e vai tentar o exército.
- Ah, que vá para o diabo – disse Buck Mulligan.
- Segue na próxima semana para pagar seus pecados. Você conhece aquela garota ruiva do Carlisle, a Lily?
- Sei.
- Estava de esfregação com ele, na noite passada, no cais. O pai dela está podre de dinheiro.
- ela já sabe manejar as bolas?
- É melhor perguntar ao Seymour.
- Seymour, um oficial de droga – disse Buck Mulligan. Nutou de si para si que arrancava as calças e se levantava, dizendo cruamente:
- As ruivas fazem galinhagens como cabras.
Descontinuou num alarme, tateando-se as ilhargas sob as fraldas da camisa.
- Minha décima segunda costela desapareceu – gritava.
- Sou o Ubermensch. Kinch o desdentado, e eu, o super-homem.
Desvencilhou-se da camisa e atirou-a para trás junto de suas roupas.
- Você vai cair, Malachi?
- Sim, vou. Abra alas.
O jovem recuou por dentro d’água e atingiu o meio da ria em duas longas braçadas precisas. Haines sentou-se sobre uma rocha, fumando.
- Você não vem entrar? – Perguntou Buck Mulligan.
- Mais tarde – disse Haines. – Não logo depois de comer.
Stephen distanciava-se.
- Já vou indo, Mulligan – disse.
- Deixe-nos a chave, Kinch – disse Buck Mulligan, - para reter minha chemise esticada.
Stephen entrregou-lhe a chave. Buck Mulligan depositou-a por sobre as roupas amontoadas.
- E dois pences – disse – para um quartilho. Jogue-os ali.
Stephen atirou-os por cima do mole apanhado. Vestindo-se, despindo-se. Buck Mulligan erecto, as mãos juntas por diante, dizia solene:
- Quem rouba ao pobre empresta a Deus. Assim falou Zaratustra.
Seu fornido corpo mergulhou.
- Já-já a gente se vê – disse Haines, voltando-se no que Stephen subia a senda, sorrindo de seu próprio irlandismo.
Corno de touro, casco de cavalo, riso de saxão.
- No Ship – gritou Buck Mulligan. – Meio-dia e meia.
- Está bem - disse Stephen.
Subia pela sobrondulante senda.
Liliata rutilantium.
Turma circumdet.
Iubilantium te virginum.
O grisalho resplendor de sacerdote no nicho em que ele se vestia discretamente. Não dormirei aqui esta noite. Para casa também não posso ir.
Uma voz abemolada e sustenida, chamava-o do mar. Numa volta acenou com a mão. Chamava-o de novo. Uma lisa cabeça parda, de foca, adentro n’água, redonda.
Usurpador.
ULISSES – Bernardina
Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:
- Introibo ad altare Dei.
Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:
- Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!

Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam. Em seguida, avistando Stephen Dedalus, ele se inclinou em direção a ele e fez cruzes rápidas no ar, gorgolejando na garganta e sacudindo a cabeça. Contrariado e sonolento, Stephen Dedalus apoiou os braços no último degrau da escada e olhou friamente para o rosto sacolejante e gorgolejante que o abençoava, para a cabeça eqüina e os cabelos claros sem tonsura, tingidos e matizados como carvalho descorado.
Buck Mulligan espreitou por um instante por baixo do espelho e depois cobriu a tigela rapidamente.
- De volta pro quartel! - disse implacavelmente.
E acrescentou em tom sacerdotal:

- Pois isto, meus bem-amados, é a verdadeira cristina: corpo e alma e sangue e feridas। Música lenta, por favor. Fechem os olhos, senhores. Um momento. Um pequeno problema com esses corpúsculos brancos. Silêncio, todos.

Ele olhou de soslaio para cima e soltou um longo e lento assobio de chamada, depois fez por um momento uma pausa em atenção enlevada, com seus dentes iguais e brancos brilhando aqui e ali pontilhados de ouro. Crisóstomo. Dois fortes assobios estridentes responderam através da calma.
- Obrigado, meu velho - gritou vivamente। - Isto é o bastante. Desligue a corrente, está bem?


Saltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na idade média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.
- A ironia das coisas! - disse ele alegremente. - Seu nome absurdo, um grego antigo!
Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.
A voz alegre de Buck Mulligan prosseguia.
- Meu nome também é absurdo: Malachi Mulligan, dois dátilos. Mas soa helênico, não soa? Saltitante e radioso como o próprio cervo. Nós precisamos ir a Atenas. Você vem se eu conseguir que a tia me dê vinte libras?
Ele pôs o pincel de lado e, rindo com prazer, gritou:
- Será que ele vem? O jesuíta subnutrido!
Parando, ele começou a fazer a barba com cuidado.
- Diga-me, Mulligan - falou Stephen tranqüilamente.
- Sim, meu anjo?
- Quanto tempo Haines vai ficar nesta torre?
Buck Mulligan mostrou um rosto barbeado por cima do ombro direito.
- Meu Deus, ele não é horrível? - disse francamente. - Um saxão enfadonho. Ele não acha que você seja um cavalheiro. Meu Deus, esses malditos ingleses! Estourando de dinheiro e indigestão. Porque ele vem de Oxford. Você sabe, Dedalus, você tem o verdadeiro estilo de Oxford. Ele não consegue entender você. Ó, meu nome para você é o melhor: Kinch, a lâmina-de-faca.
Ele raspou cautelosamente o queixo.
- A noite inteira ele esbravejou em sonho a respeito de uma pantera negra - disse Stephen. - Onde é que está o estojo da arma dele?
- Um miserável lunático! - disse Mulligan. - Você ficou apavorado?
- Fiquei - Stephen disse energicamente e com um medo crescente. - Aqui no escuro com um homem que eu não conheço esbravejando e ameaçando aos gemidos atirar numa pantera negra. Você salvou homens de afogamento. Porém eu não sou um herói. Se ele ficar aqui eu estou fora.
Buck Mulligan franziu a testa ao olhar para a espuma em sua navalha। Ele saltou de seu poleiro e começou a dar apressadamente uma busca nos bolsos de sua calça.
- Droga! - bradou guturalmente.
Ele veio para a plataforma de tiro e, enfiando a mão no bolso superior de Stephen, disse:
- Faça-nos empréstimo de seu traponasal para limpar minha navalha.
Stephen suportou que ele puxasse para fora e exibisse erguido por uma das pontas um lenço amarrotado e sujo। Buck Mulligan limpou a lâmina da navalha cuidadosamente. Em seguida, lançando um olhar por cima do lenço, disse:
- O traponasal do bardo! Uma nova cor artística para os nossos poetas irlandeses: verdemeleca. A gente quase pode sentir o gosto, não é?
Ele subiu no parapeito novamente e lançou um olhar à volta por sobre a baía de Dublin, com seu cabelo louro de carvalhopálido ligeiramente alvoroçado.
- Ó Deus! - disse tranqüilamente. - Não é que o mar é aquilo que Algy chama de uma grande e doce mãe? O mar verdemeleca. O mar escrotocompressor. Epi oinopa ponton. Ah, Dedalus, os gregos! Eu preciso lhe ensinar. Você precisa os ler no original. Thalatta! Thalatta! Ele é a nossa grande e doce mãe. Venha ver.
Stephen se levantou e se encaminhou para o parapeito. Apoiando-se nele olhou para a água embaixo e para o barco-correio desafogando a entrada da enseada de Kingstown.
- Nossa mãe toda-poderosa! - disse Mulligan.
Ele voltou abruptamente do mar para o rosto de Stephen seus olhos cinzentos inquisitivos.
- A tia acha que você matou a sua mãe - disse ele. - É por isso que ela não quer me deixar ter nada a ver com você.
- Alguém a matou - disse Stephen sombriamente।
- Que droga, Kinch, você podia ter se ajoelhado quando sua mãe agonizante pediu - disse Buck Mulligan। - Eu sou hiperbóreo tanto quanto você. Mas pensar em sua mãe rogando no seu último suspiro que você se ajoelhasse e rezasse por ela. E você recusou. Existe alguma coisa sinistra em você...

Ele se interrompeu e passou espuma de novo ligeiramente na face. Um sorriso tolerante crispou seus lábios.
- Mas um mímico encantador! - murmurou consigo mesmo. - Kinch, o mais encantador de todos os mímicos!
Seriamente e em silêncio ele fez a barba com tranqüilidade e cuidado.
Stephen, com o cotovelo repousando no granito pontudo, encostou a palma abaixo da sobrancelha e olhou para a extremidade da manga de seu casaco preto lustroso que começava a puir. Uma dor, que ainda não era a dor do amor, agitou seu coração. Silenciosamente, em sonho, ela viera até ele após a sua morte, seu corpo gasto dentro de largas roupas tumulares marrons, exalando um odor de cera e pau-rosa, seu sopro, que se curvara sobre ele, mudo, reprovador, um fraco odor de cinzas molhadas. Através do punho puído ele viu o mar saudado como uma grande e doce mãe pela voz bem alimentada ao seu lado. A orla da baía e o horizonte continham uma massa líquida verde opaca. Uma tigela de porcelana ficara ao lado do leito de morte dela contendo a bile que parecia uma lesma verde arrancada de seu fígado apodrecido em seus ataques de vômito e de altos gemidos.
Buck Mulligan limpou novamente sua navalha de barba.
- Ah, pobre corpodecão! - disse ele com voz branda. - Eu preciso te dar uma camisa e alguns traposnasais. Como está a calça de segunda mão?
- Ela está caindo bastante bem - respondeu Stephen.
Buck Mulligan atacou a concavidade abaixo de seu lábio inferior.
- A ironia disso tudo - disse ele satisfeito. - Devia ser calça-de-segunda-perna. Só Deus sabe que alcoólatra sifilítico se desfez dela. Eu tenho uma com uma listra fina cinzenta. Você vai ficar elegante nela. Não estou brincando, não, Kinch. Você fica bonitão quando está bem vestido.
- Obrigado - disse Stephen. - Se ela for cinzenta eu não posso usar.
- Ele não pode usá-la - falou Buck Mulligan para o seu rosto no espelho. - Etiqueta é etiqueta. Ele mata a mãe mas não pode usar calça cinzenta.
Ele dobrou a navalha cuidadosamente e com batidinhas leves apalpou o rosto sentindo com os dedos a pele macia.
Stephen virou seu olhar do mar para o rosto gorducho com seus olhos expressivos azulenfumaçados.
- Aquele camarada que eu encontrei no Ship ontem à noite - disse Buck Mulligan - disse que você tem p.g.i. Ele está lá em Dottyville com Connolly Norman. Paralisia geral do insano!
Ele fez o espelho rodopiar em semicírculo no ar para lançar a notícia bem longe sob a luz do sol agora radioso sobre o mar. Seus lábios crispados e barbeados riram assim como as pontas dos seus dentes brancos cintilantes. O riso se apoderou de todo o seu tronco forte e compacto.
- Olhe para você - disse ele -, seu bardo pavoroso!
Stephen inclinou a cabeça para a frente e examinou o espelho, fendido por uma rachadura tortuosa, estendido para ele. Cabelo em pé. Como ele e outros me vêem. Quem escolheu este rosto para mim? Este corpo de cão que tem de se livrar de vermes. Ele também me pergunta o mesmo.
- Eu o surrupiei do quarto da criada - disse Buck Mulligan. - Ela bem o merece. A tia sempre fica com empregadas feiosas para Malachi. Não o conduza à tentação. E seu nome é Ursula.
Rindo de novo, ele afastou o espelho dos olhos perscrutadores de Stephen.
- A raiva de Caliban por não ver seu rosto no espelho - disse ele. - Se Wilde ao menos estivesse vivo para ver você!
Recuando e apontando, Stephen disse com amargor:
- Ele é um símbolo da arte irlandesa. O espelho rachado de uma criada.
Buck Mulligan enfiou subitamente seu braço no de Stephen e caminhou com ele em volta da torre, com sua navalha e espelho estalando em seu bolso onde ele os metera.
- Não é justo implicar com você desse jeito, Kinch, não é? - disse ele amavelmente. - Deus sabe que você tem muito mais talento do que qualquer um deles.
Aparado o golpe novamente. Ele teme o bisturi da minha arte como eu temo o da dele. A pena fria de aço.
- Espelho rachado de uma criada! Diga isso para o cara bovinooxfordiano lá embaixo e arranque dele um guinéu. Ele está tresandando de dinheiro e acha que você não é um cavalheiro. O velho dele fez sua grana vendendo jalapa para os Zulus ou numa outra sórdida falcatrua. Meu Deus, Kinch, se você e eu pudéssemos ao menos trabalhar juntos nós poderíamos fazer alguma coisa pela ilha. Helenizá-la.
O braço de Cranly. Seu braço.
- E pensar em você tendo de mendigar desses porcos। Eu sou o único que sabe o que você é. Por que você não confia mais em mim? O que você tem na cabeça contra mim? É Haines? Se ele fizer algum barulho aqui eu chamarei Seymour e nós faremos um banzé com ele pior do que aquele que fizeram com Clive Kempthorpe.

Gritos jovens de vozes endinheiradas nos aposentos de Clive Kempthorpe. Caraspálidas: eles estouram de rir, um apertando a mão do outro. Ó, eu vou expirar! Dê a notícia gentilmente a ela, Aubrey! Eu vou morrer! Com tiras rasgadas da camisa dele açoitando o ar ele salta e cambaleia em volta da mesa, com as calças arriadas até os calcanhares, perseguido por Ades do Magdalen College com a tesoura de alfaiate. Uma cara de bezerro assustado enfeitada de marmelada. Eu não quero que tirem minhas calças! Não se faça de tolo comigo!
Gritos escapando da janela aberta assustando o pátio à noite. Um jardineiro surdo, vestindo um avental, com a máscara de Mathew Arnold, empurra sua ceifadeira no gramado sombrio observando atentamente as partículas saltitantes da relva.
Para nós... novo paganismo... omphalos.
- Deixe ele ficar - disse Stephen. - Não há nada de errado com ele a não ser à noite.
- Então o que é? - perguntou Buck Mulligan impacientemente. - Bote pra fora. Eu sou muito franco com você. O que é que você tem contra mim agora?
Eles pararam, olhando em direção ao promontório abrupto de Bray Head que jazia na água como o focinho de uma baleia adormecida. Stephen retirou seu braço tranqüilamente.
- Você quer que eu lhe diga? - perguntou ele.
- Quero, o que é? - respondeu Buck Mulligan. - Eu não me lembro de nada.
Ele olhou para o rosto de Stephen enquanto falava. Uma brisa ligeira passou pela sua testa, abanando suavemente seu cabelo louro despenteado e revolvendo os pontos prateados de ansiedade em seus olhos.
Deprimido por sua própria voz, Stephen disse:
- Você se lembra do primeiro dia em que eu fui à sua casa depois da morte de minha mãe?
Buck Mulligan franziu a testa rapidamente e disse:
- O quê? Onde? Eu não consigo me lembrar de nada. Eu me lembro apenas de idéias e sensações. Por quê? Em nome de Deus o que aconteceu?
- Você estava preparando o chá - disse Stephen - e eu cruzei o patamar para pegar mais água quente. Sua mãe e algum visitante saíram da sala de estar. Ela perguntou a você quem estava em seu quarto.
- E daí? - disse Buck Mulligan. - O que é que eu disse? Eu esqueci.
- Você disse - respondeu Stephen -, Ó, é apenas Dedalus cuja mãe morreu como um animal.
Um rubor que o tornou mais jovem e mais atraente subiu às faces de Buck Mulligan.
- Eu disse isso? - perguntou. - Muito bem. Que mal há nisso?
Ele sacudiu nervosamente seu constrangimento para fora de si.
- E o que é a morte - perguntou -, a de sua mãe ou a sua ou a minha mesmo? Você só viu sua mãe morrer. Eu os vejo estourar todo dia no Mater Misericordiae e no Richmond e serem retalhados até as tripas na sala de dissecção. É uma coisa brutal e nada mais. Simplesmente não importa. Você não quis se ajoelhar para rezar por sua mãe em seu leito de morte quando ela lhe pediu. Por quê? Porque você tem aquele maldito traço jesuíta em você, só que injetado de forma errada. Para mim é tudo uma zombaria e aliás brutal. Os lóbulos cerebrais dela não estão funcionando. Ela chama o médico sir Peter Teazle e arranca flores douradas da colcha. Faça a vontade dela até que tudo termine. Você contrariou seu último desejo e no entanto fica amuado comigo porque eu não me lamurio como as carpideiras contratadas de Lalouette. Um absurdo! Suponho que eu tenha dito isso. Eu não tive intenção de ofender a memória de sua mãe.
Ele tinha ele próprio falado com atrevimento. Stephen, protegendo as feridas escancaradas que as palavras haviam deixado em seu coração, disse bastante friamente:
- Eu não estou pensando na ofensa à minha mãe.
- Em que então? - perguntou Buck Mulligan.
- Na ofensa a mim - respondeu Stephen.
Buck Mulligan rodou em seus calcanhares.
- Ó, criatura impossível! - exclamou ele.
Ele saiu caminhando rapidamente em volta do parapeito. Stephen ficou de pé em seu posto, olhando por cima do mar calmo em direção ao promontório. Mar e promontório ficaram escuros. Pulsações batiam em seus olhos, velando sua visão, e ele sentiu febre em suas faces.
Uma voz chamava alto de dentro da torre:
- Você está aí em cima, Mulligan?
- Estou indo - respondeu Buck Mulligan.
Ele se voltou para Stephen e disse:
- Olhe para o mar. O que lhe importam as ofensas? Acabe com Loyola, Kinch, e desça. O saxônico quer suas fatias finas de bacon da manhã.
Sua cabeça parou ainda por um momento no topo da escada, ao nível do telhado.
- Não fique desanimado com tudo isso o dia todo - disse ele। - Eu sou inconseqüente. Desista de sua meditação ressentida.
Sua cabeça sumiu mas a lengalenga de sua voz ao descer ressoou para fora da escada.
- E basta de virar para o lado e meditar
Sobre o mistério amargo do amor
Pois Fergus comanda as carruagens de bronze.
Sombras-do-bosque flutuavam silenciosamente através da paz da manhã vindas do topo da escada em direção ao mar que ele contemplava. Dentro da praia e ao largo o espelho das águas esbranquiçadas, repelidas por pés apressados com calçados leves. Seio branco do mar sombrio. Os acentos entrelaçados, dois a dois. Dedos dedilhando as cordas da harpa, incorporando seus acordes entrelaçados. Ondabranca ligada às palavras bruxuleando na maré sombria.
Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, totalmente, toldando a baía de um verde mais profundo. Ela jazia abaixo dele, a tigela de líquido amargo. A canção de Fergus: eu a cantei sozinho na casa, abafando os acordes longos e melancólicos. A porta dela estava aberta: ela queria ouvir a minha música. Silencioso com respeito e piedade eu fui para o lado de sua cama. Ela estava chorando em seu leito miserável. Por essas palavras, Stephen: mistério amargo do amor.
Aonde agora?
Os segredos dela: antigos leques-de-plumas, carnês de baile enfeitados, impregnados de almíscar, um berloque de contas de âmbar em sua gaveta trancada. Uma gaiola pendurada na janela ensolarada da casa dela quando ela era menina. Ela ouviu o velho Royce cantar na pantomima de Turko o Terrível e riu com os outros quando ele cantou:
Eu sou o rapaz
Que é capaz
De invisibilidade.
Alegria fantásmica, embrulhada longe: perfumada-de-almíscar.
E basta de virar para o lado e meditar.
Embrulhada longe na memória da natureza com os brinquedos dela. Lembranças invadem seu cérebro ruminante. O copo da água da torneira da cozinha quando ela se aproximara do sacramento. Uma maçã sem o miolo, cheia de açúcar mascavo, assando para ela na beira da lareira numa noite escura de outono. Suas unhas bem modeladas avermelhadas pelo sangue dos piolhos espremidos das camisas dos filhos.
Num sonho, silenciosamente, ela viera até ele, seu corpo gasto dentro de suas largas roupas tumulares exalando um odor de cera e pau-rosa, seu sopro, curvado sobre ele com mudas palavras secretas, um fraco odor de cinzas molhadas.
Seus olhos vidrados, fitando de dentro da morte, para sacudir e subjugar minha alma. Só em mim. A velafantasma para iluminar sua agonia. Luz espectral sobre o rosto torturado. Seu sopro rouco estrepitando alto com horror, enquanto todos rezavam de joelhos. Os olhos dela sobre mim para me derrubar. Liliata rutilantium te confessorum turma circumdet: iubilantium te virginum chorus excipiat।
Espírito maléfico! Devorador de cadáveres!
Não, mãe! Me deixe em paz me deixe viver.
- Olá, Kinch!
A voz de Buck Mulligan cantou de dentro da torre. Ela se aproximou escada acima, chamando novamente. Stephen, tremendo ainda com o clamor de sua alma, ouviu correr a luz quente do sol e as palavras amigáveis no ar atrás de si.
- Dedalus, desça como um bom molenga. O café da manhã está pronto. Haines está se desculpando por nos ter acordado ontem à noite. Está tudo bem.
- Estou indo - disse Stephen, se virando।
- Faça isso, por Jesus - disse Buck Mulligan। - Por mim e por todos nós.
Sua cabeça desapareceu e reapareceu.
- Eu contei para ele o seu símbolo da arte irlandesa. Ele disse que é muito inteligente. Arranque uma libra dele, está bem? Ou melhor, um guinéu.
- Eu recebo esta manhã - disse Stephen.
- A grana da escola? - disse Buck Mulligan. - Quanto? Quatro libras? Empreste-nos uma.
- Se você quiser - disse Stephen।
- Quatro reluzentes soberanos - exclamou Buck Mulligan encantado। - Vamos tomar uma bebedeira gloriosa para espantar até os druidas druídicos. Quatro onipotentes soberanos.
Lançou as mãos para cima e desceu pesadamente a escada de pedra, cantando desafinado com um sotaque cockney:
- Ó, vamos ter momentos divertidos
Com uísque, cerveja e vinho bebidos!
Na coroação,
No dia da coroação!
Ó, vamos ter momentos divertidos
No dia da coroação!
Luz solar quente se alegrando acima do mar. A tigela de barbear de níquel brilhava, esquecida, sobre o parapeito. Por que eu a levaria para baixo? Ou então a deixaria ali o dia todo, amizade esquecida?
Ele se encaminhou para ela, segurou-a nas mãos por um tempo, sentindo seu frescor, cheirando a baba viscosa da espuma de barba na qual estava enfiado o pincel. Assim também eu carreguei o turíbulo de incenso então em Clongowes. Eu sou um outro agora e no entanto o mesmo. Um servo também. Um servidor de um servo.
Na sala de estar abobadada e sombria da torre a figura vestida de penhoar de Buck Mulligan se movia rapidamente de um lado para o outro em volta da lareira, ocultando e revelando seu brilho amarelo. Dois raios suaves de luz caíram cruzando o chão lajeado vindos das elevadas barbacãs: e no encontro de seus raios uma nuvem de fumaça-de-carvão e exalações de gordura frita flutuavam, dando voltas.
- Nós vamos sufocar - disse Buck Mulligan. - Haines, abra aquela porta, por favor?
Stephen pôs a tigela de barbear no armário। Uma figura alta se ergueu da rede em que estivera sentada, foi até o vão da porta e abriu as portas internas.
- Você tem a chave? - perguntou uma voz।

- Dedalus a tem - disse Buck Mulligan. - Meu Jesusinho, estou sufocado!
Ele uivou, sem levantar os olhos do fogo:
- Kinch!
- Está na fechadura - disse Stephen, avançando.
A chave rangeu estridentemente ao rodar duas vezes e, quando a porta pesada foi escancarada, uma luz bem-vinda e um ar claro entraram. Haines ficou no vão da porta, olhando para fora. Stephen arrastou sua aprumada valise para a mesa e se sentou para esperar. Buck Mulligan atirou a fritura na travessa ao seu lado. Em seguida ele carregou a travessa e o bule grande de chá para a mesa, pousou-os nela pesadamente e suspirou de alívio.
- Eu estou derretendo - disse ele - como a vela observou quando... Mas, psiu! Nem mais uma palavra sobre o assunto! Kinch, acorde! Pão, manteiga, mel. Haines, venha. A bóia está pronta. Abençoa-nos, Senhor, e a estas tuas dádivas. Onde está o açúcar? Ó, Cristo, não há leite.
Stephen apanhou o pão e o pote de mel e a manteigueira do armário. Buck Mulligan se sentou com súbito mau humor.
- Que espécie de hospedaria é esta? - disse ele. - Eu disse que ela viesse depois das oito.
- Nós podemos tomá-lo preto - disse Stephen sedento. - Há um limão no armário.
- Ó, dane-se você com suas noções peculiares de Paris! - disse Buck Mulligan. - Eu quero leite de Sandycove.
Haines veio da porta e disse calmamente:
- A mulher está vindo com o leite.
- As bênçãos de Deus recaiam sobre você! - exclamou Buck Mulligan, saltando da cadeira. - Sente-se. Sirva o chá aí. O açúcar está no saco. Olhe, eu não posso continuar me atrapalhando com esses malditos ovos.
Ele cortou os três ovos na travessa e atirou cada um deles nos três pratos, dizendo:
- In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.
Haines se sentou para servir o chá.
- Eu estou dando dois tabletes de açúcar para cada um de vocês - disse ele. - Mas, nossa, Mulligan, você faz um chá forte, não?
Cortando fatias grossas de pão, Buck Mulligan disse com uma voz engabeladora de velha:
- Quando eu faz chá eu faz chá, como dizia a velha mãe Grogan. E quando eu faz água eu faz água.
- Por Deus, isto é chá - disse Haines.
Buck Mulligan continuou cortando e engabelando:
- Eu também, Sra. Cahill - disse ela. - Por Deus, mulher - disse a Sra. Cahill -, Deus mandou dizer para você não fazer os dois no mesmo bule.
Ele entregou bruscamente de cada vez aos seus companheiros de confusão uma fatia grossa de pão, espetada em sua faca.
- Isso é o povo para o seu livro, Haines - disse ele com muita veemência. - Cinco linhas de texto e dez páginas de notas sobre o povo e os peixesdeuses de Dundrum. Impressos pelas feiticeiras irmãs no ano do vento forte.
Ele se voltou para Stephen e perguntou numa bela voz intrigada, erguendo as sobrancelhas:
- Você se lembra, irmão, se o bule de chá da mãe Grogan é mencionado no Mabinogion ou nos Upanixades?
- Tenho dúvidas - disse Stephen seriamente.
- Tem mesmo? - disse Buck Mulligan no mesmo tom. - Suas razões, por favor?
- Eu imagino - disse Stephen enquanto comia - que isso nunca existiu nem dentro nem fora de Mabinogion. Acredita-se que mãe Grogan era parenta de Mary Ann.
Buck Mulligan sorriu encantado.
- Encantador! - disse ele com uma voz doce afetada, mostrando seus dentes brancos e piscando os olhos com prazer। - Você acha que era? Que encanto!

Então subitamente com todos os traços anuviados, ele resmungou com uma voz enrouquecida e irritante enquanto cortava de novo vigorosamente o pão:
- Pois a velha Mary Ann
Ela não liga a mínima.
Mas, arregaçando seu saiote...
Ele entupiu sua boca com a fritura e mastigou e zuniu.
O vão da porta foi escurecido por uma forma que entrava.
- O leite, senhor!
- Entre, mulher - disse Mulligan. - Kinch, pegue a jarra.
Uma mulher idosa avançou e ficou de pé junto ao cotovelo de Stephen.
- É uma linda manhã, senhor - disse ela. - Glória seja dada a Deus.
- A quem? - disse Mulligan, olhando para ela. - Ah, com certeza.
Stephen recuou e pegou a jarra de leite no armário.
- Os nativos da ilha - disse Mulligan a Haines casualmente - falam com freqüência no colecionador de prepúcios.
- Quanto, senhor? - perguntou a velha.
- Um quarto - disse Stephen।
Ele a observou enquanto ela derramava na medida e daí dentro da jarra o leite grosso e branco, não o dela. Velhos mamilos mirrados. Ela derramou novamente uma medida completa e mais um pouco. Velha e reservada ela viera de um mundo matinal, talvez uma mensageira. Ela louvou as qualidades do leite, ao derramá-lo. Acocorada junto a uma vaca paciente ao raiar do dia no campo luxuriante, uma bruxa sobre o seu cogumelo, seus dedos enrugados rápidos nas tetas esguichantes. Elas mugiam à volta dela que tão bem conheciam, gado de pêlo úmido e sedoso. Seda do gado e pobre mulher velha, nomes dados a ela em tempos idos. Uma velha mulher errante, forma humilde de um imortal servindo seu conquistador e seu alegre traidor, corneada em comum acordo pelos dois, uma mensageira da manhã secreta. Servir ou reprovar, qual dos dois ele não poderia dizer; mas escarnecida a implorar seu favor.
- É mesmo, mulher - disse Buck Mulligan, derramando leite nas xícaras deles.
- Prove, senhor - disse ela.
Ele bebeu a pedido dela.
- Se pudéssemos viver de um alimento bom como esse - disse ele a ela numa voz um tanto elevada -, nós não teríamos um país cheio de dentes podres e de vísceras podres. Vivendo num lodaçal, comendo comida barata e com ruas cobertas de pó, de esterco de cavalo e de escarros de tuberculosos.
- O senhor é estudante de medicina? - perguntou a velha.
- Sou, mulher - respondeu Buck Mulligan.
- Ora vejam só - disse ela.
Stephen ouvia em desdenhoso silêncio. Ela inclina sua velha cabeça para uma voz que fala alto com ela, seu consertador-de-ossos, seu homem-médico: a mim ela menospreza. À voz que vai absolvê-la e ungir para o túmulo tudo que existe dela exceto suas entranhas sujas de mulher, feitas da carne do homem não à semelhança de Deus, a presa da serpente. E à voz autoritária que lhe ordena agora que fique em silêncio com olhos vacilantes e atônitos.
- Você está entendendo o que ele diz? - perguntou Stephen a ela.
- É francês que o senhor está falando? - disse a velha a Haines.
Haines falou com ela novamente, confiantemente numa fala mais longa.
- É irlandês - disse Buck Mulligan. - Você pode falar gaélico?
- Eu achei que era irlandês - disse ela - pelo som. O senhor é do oeste, senhor?
- Eu sou um inglês - respondeu Haines.
- Ele é inglês - disse Buck Mulligan - e ele acha que nós devíamos falar irlandês na Irlanda.
- E nós devíamos mesmo - disse a velha -, e eu estou envergonhada porque eu mesma não falo a língua. Eu ouvi dizer que é uma grande língua por aqueles que a conhecem.
- Grande não é bem a palavra para ela - disse Buck Mulligan. - Totalmente maravilhosa. Encha nossa xícara de mais chá, Kinch. A senhora quer uma xícara, dona?
- Não, obrigada, senhor - disse a velha, deixando deslizar até seu antebraço a asa do latão de leite e prestes a partir.
Haines disse a ela:
- A senhora tem aí a sua conta? Seria melhor que nós a pagássemos, você não acha Mulligan?
Stephen encheu novamente as três xícaras.
- Conta, senhor? - disse ela, parando. - Bem, são sete manhãs um quartilho por dois pence é sete vezes dois é um shilling e dois pence passados e estas três manhãs um quarto por quatro pence é três quartos é um shilling. Isto é um shilling e um e dois é dois e dois, senhor.
Buck Mulligan suspirou e, tendo enchido a boca com uma crosta de pão com bastante manteiga dos dois lados, esticou as pernas para a frente e começou a procurar nos bolsos de sua calça.
- Pague e se mostre satisfeito - disse Haines sorrindo para ele.
Stephen encheu uma terceira xícara, colorindo ligeiramente o chá com uma colher do leite grosso e forte। Buck Mulligan ergueu um florim, torceu-o em volta dos dedos e gritou:
- Um milagre!
Ele o passou pela mesa até a velha mulher, dizendo:
- Não me peça mais nada, doçura,
Tudo que eu posso lhe dar eu lhe dou।
Stephen pôs a moeda na mão nada ansiosa dela.
- Ficamos lhe devendo dois pence - disse ele.

- Tem bastante tempo, senhor - disse ela, pegando a moeda. - Bastante tempo. Bom-dia, senhor.
Ela fez uma reverência e saiu, seguida do canto terno de Buck Mulligan:
- Amor dos meus amores, houvesse mais,
E mais seria depositado aos seus pés.
Ele se voltou para Stephen e disse:
- Para falar seriamente, Dedalus. Eu estou sem um níquel. Corra para o seu colégio e nos traga de volta algum dinheiro. Hoje os bardos precisam beber e festejar. A Irlanda espera que todo homem neste dia cumpra o seu dever.
- Isso me lembra - disse Haines se levantando - que eu tenho que visitar hoje a sua biblioteca nacional.
- O nosso banho de mar primeiro - disse Buck Mulligan.
Ele se voltou para Stephen e perguntou brandamente:
- É hoje o dia de sua lavagem mensal, Kinch?
Em seguida ele disse a Haines:
- O imundo bardo insiste em se lavar uma vez por mês.
- Toda a Irlanda é lavada pela corrente do golfo - disse Stephen enquanto deixava pingar mel em uma fatia de pão.
Haines do canto em que estava dando facilmente nó na echarpe em volta do colarinho aberto de sua camisa de tênis disse:
- Eu tenciono fazer uma coleção dos seus ditos se você me permitir.
Falando comigo. Eles se lavam e se banham e se esfregam. Remorso de consciência. Consciência. No entanto eis aqui uma mancha.
- Aquele sobre o espelho rachado de uma criada ser o símbolo da arte irlandesa é tremendamente bom.
Buck Mulligan chutou o pé de Stephen por baixo da mesa e disse em tom caloroso:
- Espere até ouvi-lo sobre Hamlet, Haines.
- Bem, eu estou falando sério - disse Haines, ainda se dirigindo a Stephen. - Eu estava exatamente pensando nisso quando aquela pobre criatura entrou.


- Eu ganharia algum dinheiro com isso? - perguntou Stephen.
Haines riu e, enquanto tirava seu macio chapéu cinzento do gancho da rede, disse:
- Eu não posso dizer, com certeza.
Ele saiu perambulando para a porta. Buck Mulligan se inclinou para Stephen e disse de maneira vigorosa e áspera:
- Agora você meteu os pés pelas mãos. Por que você disse isso?
- E daí? - disse Stephen. - O problema é ganhar dinheiro. De quem? Da leiteira ou dele. É uma questão duvidosa, eu creio.
- Eu faço o seu cartaz com ele - disse Buck Mulligan - e então você vem com seu olhar de soslaio nojento e com suas chacotas jesuítas sombrias.
- Eu vejo pouca esperança - disse Stephen - vindo dela ou dele.
Buck Mulligan suspirou tragicamente e pôs a mão no braço de Stephen.
- Vindo de mim, Kinch - disse ele.
Num tom de voz subitamente mudado ele acrescentou:
- Para falar com toda a sinceridade eu acho que você está certo. Dane-se tudo mais para o qual eles sirvam. Por que você não os manobra como eu faço? Para o inferno com todos eles. Vamos sair da hospedaria.
Ele se levantou, desamarrou solenemente o cinto e despiu seu penhoar dizendo resignadamente:
- Mulligan está despojado de suas vestes.
Ele esvaziou os bolsos sobre a mesa.
- Aqui está seu traponasal - disse ele.
E colocando seu colarinho duro e a gravata rebelde ele falou com eles ralhando com eles e com a corrente oscilante de seu relógio. Suas mãos mergulharam e inspecionaram seu tronco enquanto ele clamava por um lenço limpo. Remorso de consciência. Meu Deus nós simplesmente temos que vestir o personagem. Eu quero luvas de pelica e botas verdes. Contradição. E eu me contradigo? Muito bem então, eu me contradigo. Malachi mercurial. Um projétil preto, mole, voou de suas mãos falantes.
- E aí está o seu chapéu do Quartier Latin - disse ele.
Stephen o apanhou e o pôs na cabeça. Haines os chamou da porta.
- Vocês vêm, rapazes?
- Eu estou pronto - respondeu Buck Mulligan, indo para a porta. - Saia, Kinch. Você comeu tudo que nós deixamos, eu creio.
Resignado ele saiu com palavras e passos solenes, dizendo, quase com tristeza:
- E saindo ele encontrou Butterly.
Pegando sua bengala do porta-guarda-chuvas, Stephen os seguiu para fora e, enquanto eles desciam a escada, puxou a lenta porta de ferro e a trancou. Pôs a chave pesada no seu bolso interno.
Ao pé da escada Buck Mulligan perguntou:
- Você trouxe a chave?
- Eu a tenho - disse Stephen, passando à frente deles.
Ele continuou andando. Atrás dele ele ouviu Buck Mulligan dar pauladas com sua toalha de banho pesada nos rebentos terminais de samambaias e gramas.
- Pra baixo, senhor! Como ousa, senhor!
Haines perguntou:
- Vocês pagam aluguel por esta torre?
- Doze libras - disse Buck Mulligan.
- Ao secretário de defesa do estado - acrescentou Stephen por cima do ombro.
Eles pararam enquanto Haines observava cuidadosamente a torre e finalmente dizia:
- Bastante fria no inverno, eu diria. Vocês a chamam Martello, não é?
- Billy Pitt as mandou construir - disse Buck Mulligan - quando os franceses estavam no mar. Mas a nossa é o omphalos.
- Qual a sua idéia sobre Hamlet? - perguntou Haines a Stephen.
- Não, não - gritou Buck Mulligan aflito. - Eu não sou igual a Tomás de Aquino com as cinqüenta e cinco razões que ele criou para sustentar isso. Espere até que eu tenha tomado primeiro algumas cervejas.
Ele se voltou para Stephen, dizendo, à medida que puxava para baixo as pontas de seu colete amarelo-claro:
- Você não conseguiria fazer isso com menos de três cervejas, Kinch, conseguiria?
- Já se esperou tanto tempo - disse Stephen indiferentemente -, que se pode esperar mais.
- Vocês aguçam minha curiosidade - disse Haines amavelmente. - É algum paradoxo?
- Ora! - disse Buck Mulligan. - Nós superamos Wilde e os paradoxos. É muito simples. Ele prova por álgebra que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele próprio é o fantasma de seu próprio pai.
- O quê? - disse Haines começando a apontar para Stephen. - Ele próprio?
Buck Mulligan atirou sua toalha à maneira de uma estola em volta do pescoço e, se inclinando para soltar uma gargalhada, disse no ouvido de Stephen:
- Ó, sombra de Kinch o mais velho! Jafé à procura de um pai!
- Nós estamos sempre cansados de manhã - disse Stephen a Haines. - E é uma história bastante longa para contar.
Avançando novamente, Buck Mulligan ergueu as mãos.
- Só a sagrada cerveja pode desatar a língua de Dedalus - disse ele.
- Eu quero dizer - explicou Haines a Stephen enquanto eles prosseguiam - que esta torre e estes penhascos aqui me lembram de certa forma Elsinore. Que se projeta acima de sua base dentro do mar, não é?
Subitamente Buck Mulligan se voltou por um instante para Stephen mas não falou. No instante breve e silencioso Stephen viu sua própria imagem de luto barato e empoeirado entre os trajes alegres deles.
- É um conto maravilhoso - disse Haines, fazendo-os parar novamente.
Olhos, pálidos como o mar que o vento refrescara, mais pálidos, firmes e prudentes. O rei dos mares, ele olhou em direção ao sul por sobre a baía, vazia a não ser pela fumaça emplumada do barco-correio vago no horizonte claro e uma vela bordejando Muglins.
- Eu li uma interpretação teológica disso em algum lugar - disse ele confundido. - A idéia de Pai e de Filho. O Filho se esforçando por se identificar com o Pai.
Imediatamente Buck Mulligan sorrindo mostrou um rosto sorridente e amplamente satisfeito. Ele olhou para eles, com sua boca bem delineada alegremente aberta, seus olhos, dos quais retirara subitamente todo traço de esperteza, piscando com uma jovialidade louca. Moveu sua cabeça de boneca de um lado para o outro, com as abas do seu chapéu de Panamá tremulando, e começou a entoar com uma voz pacata feliz e tola:
- Eu sou um fulano muito esquisitinho.
Minha mãe é judia, meu pai passarinho.
José carpinteiro não sabe o que faz.
E eu brindo ao Calvário e coisas que tais.
Ele ergueu um dedo indicador como aviso:
- Os que ainda duvidam que eu sou divindade
Não vão tomar o vinho que eu farei à vontade
Vão ter que beber água e a água somente
Que verto quando o vinho vira água novamente.
Ele puxou com força a bengala de Stephen em sinal de despedida e, correndo para o cimo do penhasco escarpado, fez seus dedos tremularem dos lados do corpo como barbatanas ou asas prestes a se erguer no ar, e entoou:
- Então, adeus, adeus! Escrevam o que falei
E contem a todo mundo que eu ressuscitei
Meu talento inato não pode falhar
E com a brisa do Jardim eu hei de voar
.
Ele saltou na frente deles em direção ao buraco de quarenta pés de profundidade, pulando lépido, com as mãos tremulando como se fossem asas, o chapéu de Mercúrio oscilante ao sopro do vento trazendo de volta até eles os gritos suaves e curtos dos passarinhos.
Haines, que até então rira prudentemente, prosseguiu andando ao lado de Stephen e disse:
- Não deveríamos rir, creio. Ele é muito irreverente. Eu mesmo não sou um crente, na verdade. Assim mesmo a sua alegria retira um pouco o aspecto ofensivo, não é? Como é que ele o chamou? José o Carpinteiro?
- A balada do Jesus piadista - respondeu Stephen.
- Ó - disse Haines -, você já ouviu isso antes?
- Três vezes ao dia, depois das refeições - disse Stephen secamente.
- Você não é um crente, é? - perguntou Haines. - Quero dizer, um crente no sentido estrito da palavra. Criação do nada e milagres e um Deus pessoal.
- Só existe um sentido da palavra, me parece - disse Stephen.
Haines parou para retirar uma cigarreira de prata na qual brilhava uma pedra verde. Ele a abriu fazendo saltar a tampa com o polegar e a ofereceu.
- Obrigado - disse Stephen, pegando um cigarro.
Haines tirou um para si e fechou com um estalo a cigarreira. Ele a pôs de volta em seu bolso do lado e tirou do bolso do seu colete um isqueiro de níquel, abriu-o e tendo acendido seu cigarro, estendeu a centelha chamejante para Stephen, protegida por suas mãos fechadas em concha.
- Sim, naturalmente - disse ele, enquanto eles retomavam a caminhada. - Ou a gente acredita ou não acredita, não é? Pessoalmente eu não poderia engolir a idéia de um Deus pessoal. Você não defende essa idéia, suponho?
- Você vê em mim - disse Stephen com soturno descontentamento - um horrível modelo de livre pensamento.
Ele continuou a andar, esperando que lhe fosse dirigida a palavra, arrastando sua bengala ao seu lado. Sua ponteira seguia ligeiramente pelo caminho, chiando em seus calcanhares. Meu espíritobruxo, atrás de mim, me chamando, Steeeeeeeeeeephen! Uma linha oscilante ao longo do caminho. Eles vão caminhar por ele de noite, vindo aqui no escuro. Ele quer a chave. Ela é minha. Eu paguei o aluguel. Agora eu como seu pão salgado. Dê-lhe a chave também. Tudo. Ele vai pedi-la. Isso estava claro em seus olhos.
- Afinal de contas... - começou Haines.
Stephen se virou e viu que o olhar frio que o examinava não era tão mau assim.
- Afinal de contas, eu diria que você é capaz de se libertar. Você é seu próprio mestre, me parece.
- Eu sou um servo de dois patrões - disse Stephen -, um inglês e um italiano.
- Italiano? - disse Haines.
Uma rainha louca, velha e ciumenta. Ajoelhe-se diante de mim.
- E um terceiro - disse Stephen - existe que me quer para trabalhos avulsos.
- Italiano? - Haines disse novamente. - O que você quer dizer?
- O estado imperial britânico - respondeu Stephen, ficando ruborizado - e a santa igreja católica apostólica romana.
Haines retirou do lábio inferior algumas fibras de tabaco antes de falar.
- Eu posso entender isso perfeitamente - disse ele calmamente. - Um irlandês deve pensar assim, ouso dizer. Nós na Inglaterra sentimos que tratamos vocês bem injustamente. Parece que a culpa é da história.
Os títulos potentes e orgulhosos retiniram na memória de Stephen o triunfo de seus sinos de bronze: et unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam: o crescimento lento e a mudança de rito e dogma como seus próprios pensamentos escassos, uma química de estrelas. Símbolo dos apóstolos na missa para o papa Marcelo, as vozes misturadas, cantando alto em uníssono como afirmação: e por trás do canto o anjo vigilante da igreja militante desarmava e ameaçava seus heresiarcas. Uma horda de heresias voando impropriamente com mitras: Fócio e a ninhada de zombadores dos quais Mulligan era um, e Ario lutando com a própria vida a respeito da consubstancialidade do Filho com o Pai, e Valentino, rejeitando o corpo terrestre de Cristo, e o sutil heresiarca africano Sabelio que afirmou que o Pai era Ele Próprio Seu próprio Filho. Palavras que Mulligan falara havia um momento como zombaria ao estrangeiro. Zombaria vã. O vazio aguarda certamente todos aqueles que tecem o vento: uma ameaça, um desarmar e uma derrota provocada por aqueles anjos dispostos para a batalha da igreja, o exército de Miguel, que sempre a defende na hora do conflito com suas lanças e seus escudos.
Bravo, bravo! Aplauso prolongado. Zut! Nom de Dieu!
- Naturalmente eu sou um britânico - disse a voz de Haines -, e sinto como tal. Eu também não quero ver meu país cair nas mãos de judeus alemães. Receio que seja esse o nosso problema nacional, agora.
Dois homens estavam de pé na beira do penhasco, observando: um comerciante, um barqueiro.
- Ele está se dirigindo para o porto de Bullock.
O barqueiro acenou em direção ao norte da baía desdenhosamente.
- Ali há cinco braças - disse ele. - Desse jeito ele vai ser dragado quando a maré subir por volta de uma hora. Faz nove dias hoje.
O homem que tinha se afogado. Uma vela girando em volta da baía vazia esperando que uma trouxa intumescida emerja subitamente, virando para o sol um rosto inchado, branco como o sal. Aqui estou eu.
Eles desceram do penhasco pelo caminho tortuoso. Buck Mulligan ficou de pé em cima de uma pedra, em manga de camisa, com a sua gravata desfeita esvoaçando no ombro. Um jovem se agarrando a uma saliência da rocha perto dele moveu lentamente como um sapo suas pernas verdes na profundeza gelatinosa da água.
- O seu irmão está com você, Malachi?
- Lá em Westmeath. Com os Bannons.
- Lá ainda? Eu recebi um cartão de Bannon. Diz que ele conheceu uma coisinha jovem e encantadora lá. Moça da foto como ele a chama.
- Um instantâneo, hein? Uma revelação rápida.
Buck Mulligan se sentou para desatar suas botas. Um homem mais velho projetou perto da saliência da rocha um rosto vermelho e ofegante. Ele escalou as pedras, com água brilhando em sua cachola e em sua guirlanda de cabelo grisalho, a água escorrendo pelo seu peito e pança e soltando jatos para fora de sua tanga preta e bamba.
Buck Mulligan fez espaço para que ele passasse em sua escalada e, olhando para Haines e Stephen, fez piedosamente o sinal-da-cruz com seu polegar na testa e nos lábios e no peito.
- Seymour está de volta na cidade - disse o jovem, agarrando-se de novo à sua saliência da rocha. - Ele se livrou da medicina e vai tentar o exército.
- Puta merda! - exclamou Buck Mulligan.
- Ele parte na semana que vem para queimar as pestanas. Você conhece aquela moça ruiva, a Lily Carlisle?
- Conheço.
- Estava aos beijos com ele na noite passada no quebra-mar. O pai é podre de rico.
- Ela está de barriga?
- É melhor perguntar ao Seymour.
- Seymour um maldito oficial! - disse Mulligan.
Ele acenou com a cabeça em sinal de assentimento enquanto tirava a calça e se levantava, dizendo corriqueiramente:
- As ruivas copulam como cabras.
Ele se interrompeu alarmado, apalpando o lado do peito por baixo da camisa esvoaçante.
- Minha décima segunda costela se foi - gritou ele. - Eu sou o Übermensch. O Kinch desdentado e eu, os super-homens.
Ele arrancou fora sua camisa e a atirou atrás de si para onde estavam suas roupas.
- Você vai entrar aqui, Malachi?
- Vou. Faça um lugar na cama.
O rapaz recuou aos solavancos na água e alcançou o meio da enseada com duas hábeis e longas braçadas. Haines se sentou sobre a pedra, a fumar.
- Você não vai entrar? - perguntou Buck Mulligan.
- Mais tarde. Não em cima do meu café da manhã.
Stephen se afastou.
- Estou indo embora, Mulligan - disse ele.
- Dê-nos aquela chave, Kinch - disse Buck Mulligan -, para manter minha camisa estendida.
Stephen entregou a chave a ele. Buck Mulligan a colocou por cima das roupas amontoadas.
- E dois pence - disse ele -, para uma cervejinha. Jogue ali.
Stephen atirou duas moedas de um penny na pilha macia. Vestir, despir.
Buck Mulligan ereto, com as mãos juntas à sua frente, disse solenemente:
- Aquele que rouba dos pobres empresta ao Senhor. Assim falou Zaratustra.
Seu corpo gorducho mergulhou.
- Nós o veremos novamente - disse Haines, se voltando para Stephen que seguia pelo atalho e sorrindo para o irlandês arredio.
Chifre de um touro, casco de um cavalo, sorriso de um saxão.
- O Ship - gritou Buck Mulligan. - Meio-dia e meia.
- Certo - disse Stephen.
Ele caminhou em direção ao atalho tortuoso.
Liliata rutilantium.
Turma circumdet.
Iubilantium te virginum.
A auréola cinzenta do padre no nicho em que ele discretamente se vestia. Eu não vou dormir aqui esta noite. Para casa também não posso ir.
Uma voz, sustentada suavemente, o chamava do mar. Dobrando na curva ele acenou com a mão. Ela chamava de novo. Uma cabeça marrom luzidia, de uma foca, bem longe no mar, redonda.
Usurpador.

Um comentário:

Anônimo disse...

Dá alguma tristeza ver a tradução da Bernardina.

É pior, muito pior. Sente-se.

(e se for mais fiel, pro diabo! Prefiro a construção de Houaiss então)